Em abril de 2020, os mercados globais estavam em queda livre. Os governos de todo o mundo perguntavam-se se deviam impor novas medidas protecionistas drásticas e o comércio global parecia estar a caminhar para o seu declínio mais acentuado desde a crise financeira global de 2008. Apesar de a pandemia de COVID-19 ser a causa direta deste caos, o conflito comercial ainda latente entre os EUA e a China e a falta de consenso relativamente ao futuro da Organização Mundial do Comércio (OMC) exacerbaram as preocupações.
A pandemia parecia prestes a conduzir o comércio global ao ponto de rutura.
No verão, a imagem que emergia mostrava-se fundamentalmente diferente. Apesar das preocupações iniciais, o comércio tem-se saído relativamente bem. No entanto, a recuperação do comércio não era um dado adquirido. Ao invés, tem-se devido à robustez das redes comerciais e à resistência dos legisladores a impor novas medidas protecionistas de relevo como resposta àquilo que será, esperemos, um fenómeno transitório. Quanto mais depressa o comércio global conseguir recuperar, melhor serão as perspetivas de uma recuperação económica robusta.
A recuperação no comércio de mercadorias teve início em junho. No final do ano, as perdas comerciais globais relacionadas com a COVID-19 tinham sido compensadas, com o crescimento das exportações de mercadorias a ascender aos 7,8% em dezembro em termos homólogos. Para o ano de 2020 no seu todo, o recente relatório Perspetivas Económicas Globais do Banco Mundial estima um declínio no comércio global ligeiramente menor do que o que se registou durante a crise financeira de 2009, embora se preveja que o declínio do PIB em 2020 seja quase o dobro do que se verificou em 2009. Os países de baixos rendimentos sofreram a primeira contração agregada numa geração e espera-se que se mantenham 5,2% abaixo das previsões pré-pandemia até 2022.
O desempenho relativamente melhor do comércio reflete a sua resiliência durante esta grave crise. O transporte em contentores global, uma medida em tempo real do comércio internacional, recuperou fortemente ao longo do verão e à data de 15 de fevereiro a capacidade de carga do comércio global encontrava-se 5,3% mais alta do que em igual período do ano passado. Ainda assim, a recuperação não tem sido uniforme. Se os países da Ásia Oriental que estão bem integrados nas cadeias de valor globais têm liderado o caminho, os países de baixos rendimentos e as regiões menos integradas a nível global, como a América Latina, a Ásia Austral e a África Subsariana, continuam atrasados na recuperação do comércio, com as importações a registar ainda uma queda de 15% a 20% em dezembro em termos homólogos.
No cerne da recuperação encontram-se as empresas que descobriram formas de adaptar as suas cadeias de abastecimento, mesmo com turnos de produção para manter o distanciamento social, e enfrentando a incerteza política e novos procedimentos fronteiriços. Inquéritos recentes do Banco Mundial a multinacionais indicam que mais de metade (58%) recorreu às tecnologias digitais para otimizar a capacidade e melhorar a logística e que um terço declara mapear os níveis das suas cadeias de abastecimento para melhorar a visibilidade de potenciais vulnerabilidades.
Estes desenvolvimentos são fundamentais.
Embora o mapeamento da cadeia de abastecimento tenha sido bem desenvolvido enquanto tecnologia e prática de gestão antes de 2020, até algumas grandes empresas ainda não tinham implementado melhores práticas e foram apanhadas desprevenidas quando algumas fontes de abastecimento se esgotaram. Apesar de algumas empresas terem mudado de fornecedores temporária ou permanentemente, a vasta maioria das empresas ainda não mudou de fornecedores ou de locais de produção.
O facto de poucas empresas terem mudado de locais de produção indica que as eficiências que esperam obter das cadeias de valor globais esperam continuam a superar os custos em que esperam incorrer devido a futuras disrupções da cadeia de abastecimento. Se a diversificação geográfica dos fornecedores e a relocalização da produção se tivessem tornado generalizadas, o comércio e o investimento globais teriam sofrido implicações consideráveis.
No entanto, como demonstrou a recuperação do comércio na Ásia Oriental, as cadeias de valor globais são difíceis de desembaraçar. Um recente estudo sobre as cadeias de valor globais do Banco Mundial revela que as empresas fizeram investimentos significativos em relações entre fornecedores, produtores, credores e operações de transporte ao longo dos anos, investimentos esses que as empresas estão relutantes em abandonar na ausência de provas conclusivas de que não serão rentáveis no longo prazo. As despesas que visam deslocar a produção são especialmente improváveis num período de quebra da procura, restrições de tesouraria e subutilização da capacidade. O nosso último inquérito sobre as filiais das multinacionais nos países em desenvolvimento e mercados emergentes demonstra que 85% não estão a alterar de forma alguma os seus planos de investimento globais ou que estão a adiar os investimentos.
Se o comércio era arriscado, as empresas importadoras deverão apresentar um melhor desempenho na crise. Mas foram as empresas de exportação que registaram um melhor desempenho. Inquéritos a empresas de 53 países demonstram que estas têm menos probabilidades de encerrar e que geram receitas mais altas e margem financeira mais elevada do que empresas de dimensão semelhante nos mesmos setores. Em lugar de representar um risco, o comércio tornou as empresas mais resilientes porque têm acesso a outros mercados e a um financiamento mais acessível.
O comércio de bens manteve-se relativamente bem, mas o comércio de serviços, há muito encarado como o futuro do crescimento global do comércio, registou uma queda. As exportações globais de serviços diminuíram quase um quarto em relação ao ano passado. As viagens e o turismo deterioraram-se devido a ondas sucessivas do vírus. Dados agregados relativos aos Estados Unidos, ao Japão, à China e à Alemanha revelam que as exportações de viagens diminuíram mais de 70% em dezembro face ao ano anterior. Registaram-se casos felizes como o setor das TI, que beneficiaram de um drástico aumento da força laboral em teletrabalho. Mas a queda na atividade presencial mais que compensou este fenómeno.
O comércio de bens recuperou para os níveis pré-crise, mas irá crescer?
O futuro do comércio é notoriamente difícil de prever. No final dos anos 80, as perspetivas para o comércio também se mostravam sombrias. O comércio global estava a crescer apenas ligeiramente mais depressa do que as receitas e notavelmente menos do que nas décadas anteriores e os esforços de liberalização mostravam-se estagnados. No entanto, nos anos 90, a melhoria das comunicações e da logística, vários acordos comerciais de relevo (NAFTA, a OMC, a expansão da UE) e a liberalização na China prenunciavam um período de crescimento do comércio sem precedentes.
Se os países aproveitarem a crise para abrir as suas economias e melhorar a logística, a recuperação da COVID-19 será muito mais forte. Este aspeto é especialmente importante nos países de baixos rendimentos, onde uma maior integração global, incluindo através de acordos comerciais, contribuirá para uma recuperação mais inclusiva e sustentável. Em especial, os acordos na área do comércio eletrónico e do comércio digital, bem como os acordos ecológicos, poderão apoiar o crescimento e ajudar a restaurar a cooperação global. Tal como as crescentes tensões comerciais nos anos 80 levaram a uma reformulação do sistema de comércio mundial nos anos 90, agora é necessária outra reformulação para garantir condições de concorrência equitativas, especialmente para os países de baixos rendimentos, regida por regras transparentes e previsíveis. A redução da incerteza da política comercial será fundamental para revigorar o investimento e o crescimento globais.
Até que a pandemia termine, a economia global continuará a deparar-se com obstáculos à recuperação. Os investidores permanecem à margem, à espera de ver que setores e mercado irão recuperar mais rapidamente e de que forma as políticas de comércio e de investimento irão adaptar-se. Um crescimento mais forte do comércio e investimento globais fortaleceria a recuperação pós-COVID-19. No entanto, exigirá que os governos dos países desenvolvidos cumpram políticas previsíveis e abertas e que os governos dos mercados emergentes e dos países em desenvolvimento utilizem a crise como uma oportunidade para reformas conducentes à abertura dos mercados.
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Este artigo faz parte de uma série dedicada a estimular o diálogo, conversas e debate em paralelo com o evento de balanço da Ajuda ao Comércio da OMC, que se realiza de 23 a 25 de Março. Os artigos respondem ao tema 4 do evento: GVCs, capacidade do lado da oferta e a pandemia.
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