16 Dezembro 2019

“Acesso a recursos genéticos e partilha de benefícios” no Quadro Global para a Biodiversidade pós-2020

  • O “acesso a recursos genéticos” e a “partilha justa e equitativa de benefícios” na Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica (CDB) e no Protocolo de Nagoya podem compensar os custos de oportunidade da conservação.

  • O recurso a mobilizar para o Quadro Global para a Biodiversidade pós-2020 constitui as receitas de royalties provenientes de propriedade intelectual que utiliza recursos genéticos.

  • Um Mecanismo Multilateral Global de Partilha de Benefícios revela-se o veículo adequado mediante o qual os países ricos em biodiversidade podem ser compensados por recursos genéticos utilizados na propriedade intelectual.

  • A justiça e a equidade na partilha de benefícios exigem um tratamento igual da informação artificial e natural na CDB e no Protocolo de Nagoya.

É sombria a conclusão do Relatório de Avaliação Global de 2019 da Plataforma Intergovernamental Político-Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistémicos. “As ações humanas ameaçam agora de extinção global mais espécies do que alguma vez se verificou.” A avaliação constitui simultaneamente uma chamada de alerta e uma acusação.

Algo falhou em grande escala na Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) de 1992 e no Protocolo de Nagoya de 2010. Acreditamos que esse algo seja o “acesso a recursos genéticos” e a “partilha justa e equitativa de benefícios decorrentes da utilização” (APB – Acesso e Partilha de Benefícios), que é o terceiro objetivo da Convenção e a razão de ser do Protocolo. A APB procura alinhar incentivos entre utilizadores e fornecedores de recursos genéticos. No entanto, o sucesso do alinhamento depende da modalidade de APB escolhida.

Embora a questão seja intrinsecamente económica, os aspetos económicos relevantes têm sido diligentemente ignorados pela Conferência das Partes na CDB. Os prejuízos causados pela ignorância propagam-se para Norte e para Sul, tanto nos países utilizadores como fornecedores. No entanto, são os países ricos em espécies mas pobres em capital que carregam o fardo.

Falhas fundamentais e significados comuns

De acordo com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, uma palavra não definida num tratado deve ser interpretada com o seu “sentido comum” e “à luz do seu objeto e finalidade.” Na CDB, “material genético” foi definido em termos de “material” e “material” ficou por definir. O desleixo deixa as suas marcas.

É possível sentir as repercussões na questão polémica da “informação da sequência digital”. Em 2017, foi encomendado um estudo para apuramento de factos e exploratório e em 2018 foi criado um grupo ad hoc de especialistas técnicos. Embora o grupo não tenha chegado a acordo no que se referia ao “material genético”, verificou-se a existência de consenso quanto à “informação da sequência digital”: não era “o termo mais apropriado.”

Mais concretamente, “alguns participantes eram da opinião de que parte ou a totalidade destes tipos de informação, considerados em conjunto, poderia ser designada como ‘informação natural’.” Quando o objeto do acesso a partilha de benefícios é interpretado como “informação natural”, os aspetos económicos ficam em evidência. A sua aplicação implica que o multilateralismo suplante o bilateralismo como modalidade do APB.

Os representantes do Norte e do Sul geralmente têm formação em direito. Eles debatem-se com os aspetos económicos. Poder-se-ia dizer que uma maioria confunde os aspetos económicos dos fatores tangíveis com os dos intangíveis e o bilateralismo com a soberania. Nada poderia ser pior para a eficiência e a equidade. As duas economias são diametralmente opostas. Os fatores tangíveis justificam o bilateralismo e os intangíveis o multilateralismo.

A economia pode ser explicada com um exemplo banal: móveis. Imagine uma cadeira fabricada no mundo em desenvolvimento. Os fatores tangíveis são a madeira, a mão de obra e a maquinaria utilizada na sua produção. A cadeira exige também um design, que é um fator intangível. O bilateralismo significa que qualquer pessoa pode copiar o design e competir. O multilateralismo significa que o designer beneficia de um grau de proteção.

Mecanismo Multilateral Global de Partilha de Benefícios

Desde Adam Smith que os economistas têm celebrado a competição como um motor de eficiência e até de equidade. A informação constitui a exceção. Quando a competição se segue à informação, muitos candidatos a inovadores aguardam para copiar o que foi inventado por outros. A estratégia evita os custos fixos associados à criação. Caso um número suficiente de fornecedores possa beneficiar gratuitamente, o preço de mercado cairá a pique e os inovadores não estarão aptos a recuperar os custos fixos da invenção.

Reconhecendo a ineficiência e a iniquidade de tais resultados, os governos institucionalizaram monopólios sobre informação produzida por humanos, ou seja, informação artificial, através de direitos de propriedade intelectual limitados no tempo.

A mesma lógica pode aplicar-se aos recursos genéticos. Tal como os governos incentivam a criação de informação artificial, como., por exemplo, inovações e criações, através de direitos de propriedade intelectual, os governos podem incentivar a conservação de informação natural através do APB. Na medida em que a informação natural é disseminada pelas jurisdições, a proteção deve ser oligopolística em lugar de monopolística.

Sem esta proteção, o preço de mercado irá colapsar. Os custos de oportunidade da conservação permanecerão demasiado altos.

Os indícios do nivelamento por baixo provêm de um país cuja constituição obriga à transparência. Em 2015, o Brasil promulgou legislação que permite que os royalties sobre a utilização de recursos genéticos cheguem a um nível tão baixo como 0,1%. É necessário ter em mente que 0,1% é incrivelmente baixo. Numa biotecnologia com um milhão de dólares em vendas, será acumulada a insignificante quantia de um milhar de dólares de royalties. Numa inovação de grande sucesso, geralmente definida como geradora de vendas de mil milhões de dólares americanos, será acumulado apenas um milhão de dólares.

O Brasil é o país mais megadiverso. Um limite-base de 0,1% no Brasil tornar-se-á no padrão dos acordos bilaterais em todo o mundo. Embora o royalty infinitesimal prejudique todos os países, os mais afetados são os países menos avançados, que são também megadiversos. Podemos pensar na República Democrática do Congo ou em Madagáscar.

Poderá o APB alguma vez impulsionar a “mobilização de recursos”?

O Artigo 10.º do Protocolo de Nagoya de 2010 pede às partes que “considerem” modalidades de um Mecanismo Multilateral Global de Partilha de Benefícios para “situações transfronteiriças.” A formulação do texto pode parecer fraca, mas não é. Na medida em que a matéria não pode estar em dois locais ao mesmo tempo, a informação está implícita em “transfronteiriças”. De igual modo, o “global” que qualifica “mecanismo” implica que os royalties sejam estabelecidos multilateralmente.

A partilha mais justa de receitas de royalties seria uma distribuição proporcional à área geográfica do habitat. Para a informação natural ubíqua, as receitas recolhidas financiariam a necessária infraestrutura para a taxonomia e o levantamento de espécies. Até que a utilização de um recurso genético resulte em propriedade intelectual, a informação natural flui livremente. Esta modalidade dá pelo nome de “abertura limitada.”

Caso a “consider[ação]” de um Mecanismo Multilateral Global de Partilha de Benefícios se torne implementação, o Artigo 10.º irá agitar 14 Conferências das Partes.

Por que motivo os utilizadores continuam a rejeitar o Mecanismo Multilateral Global de Partilha de Benefícios? E por que motivo os fornecedores permanecem inabaláveis? A resposta é bastante prosaica. Nem só as carreiras e as reputações estão em jogo, também o dinheiro está.

As vendas de biotecnologia anuais a nível mundial são da ordem das várias centenas de milhares de milhões de dólares americanos. As receitas de uma percentagem de royalties de 1% a 10%, negociada através da Conferência das Partes, poderiam chegar às dezenas de milhares de milhões de dólares americanos por ano. Os custos de oportunidade da conservação e da utilização sustentável, o Artigo 1.º da CDB, seriam finalmente compensados. A “Mobilização de recursos”, o Artigo 25.º do Protocolo de Nagoya, seria finalmente uma realidade. As receitas de royalties constituiriam uma força compensatória das mudanças propostas na utilização da terra em países carenciados de capital.

O APB nas Metas de Biodiversidade de Aichi e o Quadro para a Biodiversidade pós-2020

Em qualquer lista longa, o elemento mais importante é frequentemente subapreciado. O Protocolo de Nagoya contém 36 artigos. O Artigo 10.º (Mecanismo Multilateral Global de Partilha de Benefícios) não é apenas um em três dúzias; este constitui a base tanto do Protocolo como da Convenção. De igual modo, as Metas de Biodiversidade de Aichi são 20 no total. A meta número 16 é o Protocolo de Nagoya.

A escala importa tanto na economia como na ecologia.

Nos acordos bilaterais, as percentagens dos royalties são tão baixas que os utilizadores não as divulgam por sua vontade. Dito isto, o critério da justiça e da equidade não exige qualquer percentagem específica. Exige apenas tratamento igual na proteção da informação artificial e natural. Um Mecanismo Multilateral Global de Partilha de Benefícios estabelece condições de concorrência equitativas.

A melhoria da percentagem dos royalties depende de quão bem os fornecedores, na sua maioria países menos avançados e países em desenvolvimento, negociarem enquanto grupo. A melhoria poderia chegar até duas ordens de grandeza acima. Contudo, caso um fornecedor permita uma perda de habitat, a sua quota nas receitas de royalties diminuirá. 

De facto, a escala importa, Através de significativas receitas de royalties em biotecnologias, muitas das quais ficarão a dever a sua existência à “abertura” na “abertura limitada”, o Artigo 10.º pode tornar-se a base não somente da Convenção sobre a Diversidade Biológica e do Protocolo de Nagoya, mas também do Quadro Global para a Biodiversidade pós-2020.

 

-----

Manuel Ruiz Muller é Consultor de Topo e Investigador da Sociedad Peruana de Derecho Ambiental. Joseph Henry Vogel é Professor de Economia na Universidad de Puerto Rico-Río Piedras. Klaus Angerer tem um pós-doutoramento da Carl Friedrich von Weizsäcker-Center for Philosophy and History of Science, Berhard Karls Universität Tübingen. Nicolas Pauchard é doutorando na Swiss Graduate School of Public Administration, Université de Lausanne.

Aviso legal
Any views and opinions expressed on Trade for Development News are those of the author(s), and do not necessarily reflect those of EIF.