14 Janeiro 2020

Não deixar ninguém para trás: Nova ajuda para os países menos avançados que estão a abandonar este estatuto (Parte I)

  • Na sequência de um rápido progresso, até 12 PMA poderão abandonar o estatuto nos próximos anos. Os países envolvidos somam até um quarto da população total dos PMA.

  • O progresso foi sustentado em algumas áreas por medidas de apoio internacional aos PMA.

  • No entanto, a persistência, e por vezes o agravamento, das desigualdades leva muitas pessoas a serem deixadas para trás.

No trajeto entre Chittagong e Cox’s Bazar, no sul do Bangladeche, o dinamismo é palpável. Uma nova e magnífica estrada substituiu os caminhos acidentados do sul da cidade, direcionando os viajantes para luxuriantes campos de arroz. O trânsito está menos apocalíptico do que na capital, Daca, mas os destacados sinais de uma classe média jovem não cessam de se fazer sentir. Junto das ruas, erguem-se as muralhas de novos reinos de betão.

Este trajeto reflete a própria evolução do Bangladeche. A guerra civil e a fome no início dos anos 70 deram lugar a uma revolução verde. Políticas industriais engenhosas contribuíram para criar empregos numa florescente indústria de vestuário e o setor dos serviços está agora em rápida expansão. A pobreza extrema caiu de quatro quintos da população para menos de um décimo. A economia terá sido uma das três que registou o crescimento mais rápido do mundo em 2019.

A saúde e a educação desenvolveram-se notavelmente. Quando alcançou a independência, em 1971, o cidadão médio do Bangladeche tinha uma esperança de vida de 47 anos. Atualmente, esta esperança de vida situa-se em 72 anos, mais do que a média do sul da Ásia. A mortalidade infantil diminuiu de 149 para 28 ao longo do mesmo período, outro fator com um desempenho superior ao que se  verifica na região. Quase três quartos das crianças frequentam o ensino secundário, uma subida face a apenas um quinto em 1973.

Os grandes avanços sociais conquistados explicam-se em parte pela lendária sociedade civil do Bangladeche. Durante décadas, trabalhadores de organizações não governamentais aperfeiçoaram as suas competências nas zonas rurais. Em 2015, em conjunto com as Nações Unidas e o governo, o país acolheu, vacinou e alimentou quase 750 mil refugiados rohingya num tempo recorde depois de terem cruzado a fronteira em direção a Cox's Bazar, provenientes do estado vizinho de Rakhine em Mianmar.

Uma onda de abandonos do estatuto de PMA

É este tipo de progresso económico e humano que coloca o Bangladeche, de longe o PMA mais populoso, perto da vanguarda de 12 países que deverão abandonar o estatuto de País Menos Avançado (PMA) das Nações Unidas nos próximos anos.

O Bangladeche e Mianmar foram os únicos dois países que cumpriram os três critérios necessários para abandonar o estatuto de PMA pela primeira vez na análise do Comité de Política de Desenvolvimento (CPD) das Nações Unidas em 2018. Se estes países continuarem a cumprir os objetivos em 2021, poderão abandonar o estatuto de PMA em 2024. Há já cinco países programados para abandonar o estatuto entre este ano e 2024. Outros sete deverão seguir-se pouco depois.

Se tal acontecer, após um período de transição estes países, bem como os seus 270 milhões de habitantes, ou seja, um quarto do total da população dos PMA, perderão os benefícios associados ao estatuto de PMA, incluindo acordos comerciais preferenciais, o compromisso dos países ricos de dar prioridade aos PMA nas afetações de ajuda, o financiamento em condições favoráveis a medidas climáticas, a assistência prestada à participação em reuniões internacionais e concessões do orçamento das Nações Unidas.

O crescimento da indústria do vestuário em países como o Bangladeche e Mianmar tem sido sustentado por um acesso ao mercado livre de direitos e de quotas ao abrigo da iniciativa da União Europeia Tudo Menos Armas (EBA) desde o seu lançamento, em 2001. Isento do pagamento de tarifas alfandegárias sobre qualquer produto que envie para a UE, o Bangladeche tornou-se no segundo maior exportador de vestuário do mundo. A indústria de Mianmar cresceu dez vezes desde que o país ganhou acesso à EBA, em 2013. Mais de meio milhão de trabalhadores enviam três quartos do seu salário para familiares que vivem nas zonas rurais. Também para o Camboja, que deverá abandonar o estatuto de PMA um pouco mais tarde, a EBA tem sido um boom para os fabricantes de vestuário.

Outros exportadores dos PMA também recorrem a sistemas de preferências comerciais. E para os países que não o fazem, os governos mostram-se frequentemente relutantes em dar sinais de complacência desistindo das restantes pequenas concessões simbólicas.

Se há quem possa dizer que chegou o momento de os PMA em fase de abandono do estatuto abdicarem destes privilégios, o panorama real é mais complexo. As condições de concorrência não são equitativas. Alguns ex-PMA continuarão a enfrentar enormes desvantagens em termos de geografia, história, dimensão, estrutura económica e posição. Um país pode abandonar o estatuto de PMA, mas grande parte da sua população não conseguirá fazê-lo..

A tirania das médias

O rendimento nacional bruto per capita no Bangladeche atingiu os 1274 dólares com base no poder de compra em 2018, imediatamente acima do limiar definido para o abandono do estatuto de PMA.[1] No entanto, a divisão do rendimento total pelos 163 milhões de habitantes do país não reflete de forma alguma a forma como este é repartido.

Embora a pobreza tenha diminuído no longo prazo e a maioria da população do Bangladeche tenha uma vida saudável e com muito mais educação do que depois da independência, o progresso está a estagnar.

O rendimento do décimo inferior da população do Bangladeche caiu entre 2010 e 2016. Os cinco por cento inferiores viram os seus rendimentos diminuir em mais de metade ao longo do mesmo período, de acordo com dados do governo. Cerca de 40 milhões de pessoas continuam a viver abaixo do limiar de pobreza nacional, o que é suficiente para formar o terceiro maior país menos avançado do mundo por direito próprio, Entretanto, o rendimento dos cinco por cento superiores das famílias urbanas disparou 88% em 2016 para um valor 100 vezes maior do que o obtido pelos mais pobres.

“A conclusão inequívoca que pode ser retirada é que os ricos estão a ficar mais ricos ao passo que os pobres estão a ficar mais pobres” revela um relatório do Centro para o Diálogo Político, sediado em Daca. Tal como acontece em tantos países, cada vez mais pessoas estão a ser deixadas para trás.

A explosão dos rendimentos dos cidadãos mais ricos no Bangladeche permite-lhes acumular ainda mais. A distribuição da riqueza tem disparidades alarmantes. Um documento do Centro para o Diálogo Político calculou que em 2010 os cinco por cento superiores das famílias detinham mais de metade da riqueza do país e o um por cento superior possuía quase um terço O um por cento inferior, em contrapartida, não possuía qualquer riqueza e os cinco por cento inferiores detinham apenas 0,04%. O mesmo documento revelou que o coeficiente de riqueza de Gini era de 0,74, o que representa uma profunda desigualdade da riqueza.

Um Estado menos avançado

Em todo o mundo, a quota dos salários na produção económica está a diminuir, ao passo que o rendimento do capital está a aumentar. A globalização está a estreitar as diferenças entre os países, mas a abrir fossos no interior dos mesmos. O mesmo cenário é visível em vários PMA que estão na fase de abandono do estatuto, onde uma classe urbana próspera e educada tira proveito das oportunidades da industrialização e da abertura internacional, deixando os outros para trás.

O caso do Bangladeche não é de forma alguma único. Em Vientiane, a capital da RDP do Laos, é possível pedir um fantástico peito de pato com foie gras com um crème brûlée como sobremesa ou bebericar um latte à hora de almoço. Entretanto, numa aldeia da comunidade lantan na província nortenha de Luang Namtha, crianças de ventre inchado e seminuas vendem pulseiras aos turistas por 80 cêntimos de dólar. Ouve-se tossir de dentro das cabanas de colmo.

Aqui e noutras zonas rurais, o acesso à economia moderna e aos serviços sociais é mais difícil do que na capital. Os povos indígenas são frequentemente os mais vulneráveis. Enfrentando menos oportunidades de emprego e nenhuma outra fonte de rendimento, muitas mais pessoas continuarão, com efeito, a viver num Estado menos avançado ainda durante muitos anos. De que forma deve responder a comunidade internacional?

 

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[1] O limiar do rendimento per capita na última análise trienal era de1230 dólares utilizando o método Atlas do Banco Mundial com base no poder de compra. Os outros dois critérios são o índice de capital humano e o índice de vulnerabilidade económica. Um país tem de exceder mais de dois dos três critérios em duas análises consecutivas do CPD para que o seu abandono do estatuto de PMA seja levado em consideração.

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Este artigo constitui o primeiro uma série de dois. A segunda parte considera algumas possíveis novas formas de apoiar os PMA que abandonam este estatuto.

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Daniel Gay é um consultor independente que trabalha com o Comité de Política de Desenvolvimento para os Países Menos Avançados das Nações Unidas. Pode ser seguido no Twitter @DanGay 

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