4 Fevereiro 2019

Apoiar uma colaboração sustentada é fundamental para alcançar resultados coerentes na agricultura e no comércio em África, conforme revela um relatório

A implementação é tudo no alinhamento entre o comércio e a agricultura nos PMA em África

Se o desalinhamento entre os setores da agricultura e do comércio pode estar a conduzir a resultados políticos ineficazes, um relatório recente sugere que é a implementação dessas políticas que necessita de um melhor apoio para que os objetivos de crescimento agrícola de África possam ser alcançados.

“Apesar de os ministérios da agricultura e do comércio trabalharem em conjunto na formulação de quadros políticos setoriais, como os Planos Nacionais de Investimento na Agricultura ou as estratégias nacionais de exportação, essa colaboração tende a falhar na implementação. Verifica-se frequentemente uma ausência de colaboração sustentada que lhes permita implementar políticas de forma coordenada”, declara Ishrat Gadhok, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e uma das principais editoras do relatório.

De acordo com o Banco Mundial, a agricultura é quatro vezes mais eficaz para o aumento dos rendimentos e a redução da pobreza do que o crescimento proporcionado por outros setores.

No entanto, os esforços para elevar a produtividade agrícola e desenvolver cadeias de valor agrícolas inclusivas e competitivas são frequentemente condicionados por obstáculos relacionados com o mercado e o comércio, ao passo que as iniciativas que promovem a comercialização e a diversificação de produtos agrícolas são geralmente limitadas por obstáculos ao nível do cultivo ou da fase pós-colheita. Estes obstáculos resultam frequentemente de um desalinhamento entre as políticas nacionais para a agricultura e o comércio ou são exacerbados pelas mesmas.

“Depois de analisar os principais documentos políticos tanto do ministério da agricultura como do comércio, a principal componente em falta nos quadros para o setor da agricultura é o facto de realmente não levarem em conta as questões do comércio. Quando falamos com os responsáveis pelo setor da agricultura na Zâmbia, dizem ‘temos um Ministério do Comércio e da Indústria (MCI) que está a lidar com essa questão’, depois passamos ao Ministério do Comércio e analisamos os seus documentos e descobrimos que levam o comércio em conta a um nível mais geral”, afirma Daniel Njiwa, autor do estudo da Zâmbia que informou o relatório.

“Nos poucos casos em que as políticas do MCI levam em consideração questões agrícolas específicas, selecionam apenas algumas cadeias de valor e frequentemente não estão alinhadas com as prioridades da despesa do Ministério da Agricultura. Por isso, o MCI pode estar concentrado no couro ou no mel, por exemplo, ao passo que o Ministério da Agricultura se concentra no milho e na soja.”

Esta questão é sentida com mais intensidade nos países em desenvolvimento e nos Países Menos Avançados (PMA), explica Daniel Njiwa, onde a transformação do setor da agricultura é fundamental para melhorar a segurança alimentar e a nutrição internas e promover o desenvolvimento económico.

“Temos imensos pequenos agricultores e quanto mais ignorarmos a falta de ligação entre o comércio e a agricultura, mais excluímos as pessoas que supostamente deveriam beneficiar. A falta de resposta às questões comerciais na agricultura reflete-se num declínio dos incentivos aos pequenos agricultores”, refere Daniel Njiwa.

Ponto de viragem

Verificaram-se várias declarações e iniciativas para ligar melhor o crescimento da agricultura e o desenvolvimento a oportunidades de comércio em África. As declarações de Maputo e Malabo da União Africana (UA) atraíram atenção e um compromisso político de alto nível, ao passo que o Programa Integrado para o Desenvolvimento da Agricultura em África (CAADP) foi criado em 2003 para aumentar o investimento público e privado na agricultura e, como resultado, aumentar o crescimento da agricultura enquanto percentagem do PIB.

Através do CAADP, 33 países alinharam os interesses de várias partes interessadas a fim de desenvolver os Planos Nacionais de Investimento na Agricultura. Existem também vários quadros para o comércio, como os Estudos de Diagnóstico sobre a Integração do Comércio do Quadro Integrado Reforçado (QIR), que cada vez mais levam em consideração a agricultura.

“Estes esforços têm ajudado, mas as plataformas existentes não são funcionais. Estão aptos a estabelecer uma plataforma, mas não fazem o acompanhamento no sentido de garantir que estas plataformas continuam a ser funcionais no longo prazo”, afirma Daniel Njiwa.

Para ajudar à criação de ligações reforçadas entre os programas e estruturas do comércio e da agricultura na África Oriental e Austral, em 2017 a FAO e o QIR decidiram conjugar as suas redes e experiências.

“O QIR possui uma significativa experiência de trabalho com os ministérios do comércio e a FAO tem tradicionalmente trabalhado com os ministérios da agricultura. Através de uma colaboração técnica entre a FAO e o QIR, o nosso objetivo consistia em melhorar a compreensão dos processos de formulação de políticas que regem a agricultura e o comércio e identificar oportunidades para ligar melhor estes processos a fim de promover uma maior coerência política”, explica George Mermigkas, da FAO e Diretor Técnico Principal do projeto que serviu de base ao relatório.

O que está escrito nas entrelinhas

Começaram por realizar uma análise do alinhamento entre os processos de formulação de políticas nos ministérios da agricultura e do comércio em quatro PMA em África: Moçambique, Ruanda, Tanzânia e Zâmbia.

“Estávamos empenhados em compreender e comparar a forma como as políticas da agricultura e do comércio são formuladas e implementadas nos quatro países e determinar se havia semelhanças ou diferenças das quais se pudesse retirar lições para os doadores e responsáveis por iniciativas de desenvolvimento que apoiam estes processos”, refere George Mermigkas.

Para compreender a forma como os documentos políticos eram formulados – quem eram as partes interessadas envolvidas, de que forma as prioridades eram definidas e se havia lacunas ou semelhanças entre os ministérios –, não só analisaram milhares de páginas de documentos políticos, como entrevistaram centenas de partes interessadas do governo, do setor privado e da sociedade civil.

“Para compreender a fundo o contexto das políticas, era importante falar com as pessoas envolvidas na elaboração dessas políticas para entender o que está escrito nas entrelinhas, ou seja, por que motivo era dada prioridade a determinadas questões e até que ponto o seu acompanhamento estava a ser feito”, explica Ishrat Gadhok.

Descobriram que, na verdade, existe consulta entre os ministérios da agricultura e do comércio, especialmente durante a formulação de quadros políticos de orientação fundamentais, como os Planos Nacionais de Investimento na Agricultura.

“Durante a formulação de políticas, são frequentemente criados comités para envolver os diferentes parceiros. Mas, assim que a política é implementada, muitas vezes não existe rubrica orçamental para dar continuidade a esses comités ou outras formas de colaboração sustentada entre os ministérios”, declara George Mermigkas.

Descobriram também que as prioridades articuladas nos documentos políticos tendem a ser de nível relativamente alto, o que converte a implementação num desafio.

“Os quadros políticos identificam prioridades importantes, mas geralmente são demasiado numerosos e redigidos de uma forma que não facilita a sua implementação. Quando se tem orçamento, o que é especificamente necessário fazer para desenvolver uma determinada prioridade e por que ordem? A estratégia escolhida geralmente necessita de ser definida em maior profundidade”, declara Ishrat Gadhok.

Na Zâmbia, por exemplo, o Ministério da Agricultura despende mais de 60% do seu orçamento anual em investimentos relacionados com o milho, incluindo a iniciativa de subsídio aos contributos dos agricultores e as operações da Agência de Reserva de Alimentos, que é responsável por reservas estratégicas de cereais em detrimento de outros motores de crescimento como a investigação, a irrigação e a extensão, tal como identificadas pelo Plano Nacional de Investimento na Agricultura.

“Esta ênfase nos investimentos em milho também não é plenamente complementada nas intervenções do MCI”, salienta Daniel Njiwa.

Colmatar lacunas de conhecimento

Descobriram também que, quando existe uma colaboração interministerial, frequentemente não há representação ao nível da tomada de decisões e que tal contribui para uma confusão de responsabilidades.

“Embora o ministério do comércio seja o guardião da política do comércio, não tem capacidade para tomar algumas decisões no que respeita à periodicidade e quantidade de exportações de produtos agrícolas porque esta responsabilidade foi delegada ao ministério da agricultura. Este aspeto, aliado a uma reduzida coordenação entre os setores, resulta em confusão na implementação do mandato do comércio em linha com os acordos multilaterais ou bilaterais”, afirma Daniel Njiwa.

Para ajudar a abordar este aspeto, o projeto desenvolveu uma série de módulos de formação online sobre tópicos como de que forma a agricultura é tratada nos acordos de comércio multilaterais e regionais e a relação entre o comércio e a segurança alimentar.

“É importante que os ministérios detenham este conhecimento, já que irá reger o tipo de instrumentos da política agrícola e comercial que os países podem utilizar”, explica George Mermigkas.

Reuniram um total de 100 legisladores e responsáveis políticos, maioritariamente dos ministérios da agricultura e do comércio de 15 países da África Oriental e Austral, para ministrar os dois cursos online com a duração de quatro semanas, através da plataforma da UNITAR. Para consolidar a aprendizagem e as redes, foram também realizados dois workshops regionais após a conclusão de cada curso, contando com a presença de 20 participantes.

“Através de interações online nos fóruns de debate do curso e de eventos de acompanhamento dirigidos ao diálogo, visámos criar uma rede de legisladores e responsáveis políticos para debater questões da agricultura e do comércio, em especial para apoiar as negociações em curso relativas à Zona de Livre Comércio Continental”, adianta George Mermigkas.

O curso foi bem recebido, com base nos comentários dos participantes nas avaliações do curso, conforme refere Ishrat Gadhok.

“À medida que continuamos a receber pedidos para estes cursos, desenvolvemos módulos adaptados às regiões da África Oriental e Austral, e agora para as regiões da África Ocidental e Central em francês… Estamos a tentar chegar ao máximo de países possível”, afirma George Mermigkas.

Apoiar a implementação

O projeto que apoiou o relatório foi concluído e a equipa procura agora expandir os trabalhos para mais sete países a fim de prestar assistência à implementação das prioridades do comércio para a agricultura.

“Com base nas prioridades existentes articuladas nos quadros políticos setoriais, queremos ajudar os ministérios do comércio e da agricultura destes países a selecionarem, em colaboração, um subconjunto de áreas políticas críticas e auxiliá-los na definição e implementação de ações concretas nestas áreas”, declara Ishrat Gadhok.

“A ideia é compreender melhor e ajudar a resolver problemas de implementação e, através deste processo, informar a formulação da próxima geração de Planos Nacionais de Investimento na Agricultura e outros quadros políticos setoriais.”

A Zâmbia está também a experimentar uma abordagem diferente à criação do seu próximo plano nacional de desenvolvimento, que se centrará mais no planeamento à escala nacional nos vários setores.

“Criou grupos consultivos de clusters que reúnem diferentes setores económicos e atores na identificação e implementação das prioridades nacionais. Esta abordagem tem o potencial de aumentar a coordenação e a coerência entre os ministérios envolvidos”, afirma Daniel Njiwa.

O facto de este estudo ter sido desenvolvido ao mesmo tempo que a formulação do Plano Nacional de Desenvolvimento e de ter envolvido praticamente os mesmos responsáveis permitiu a sinergia de ideias e recomendações para melhorar a coordenação e a coerência entre a elaboração de políticas para o comércio e a agricultura. Desta forma, o relatório em si parece ter exercido impacto neste processo, conforme referiu Daniel Njiwa.

“O relatório também será útil na medida em que o Ministério da Agricultura irá ponderar a segunda iteração do CAADP, pelo que continua a ser muito importante na formulação de futuros documentos políticos e estratégias.”

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